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Escritos de Eva

Eva diz o que sonha (e não só) sem alinhamento a políticas ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Um texto, uma imagem... para todas as idades

Eva diz o que sonha (e não só) sem alinhamento a políticas ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Um texto, uma imagem... para todas as idades

Escritos de Eva

07
Dez08

Nikos Kazantzaki # Como conheci Alexis Zorba (continuação)

eva

Um dia recebi este telegrama: «Descoberta uma bela pedra de cor verde, presença imediata indispensável. - ZORBA.»
Começava a ouvir-se ao longe o ribombar da trovoada que se tinha desencadeado sobre a terra: a Segunda Guerra Mundial.
Milhões de homens estremeciam com a ameaça da fome, do massacre e da loucura. Todos os demónios do homem tinham despertado e estavam sedentos de sangue.
Foi durante esses dias envenenados que recebi o telegrama de Zorba. A princípio fiquei enfurecido: o mundo está em convulsão, a vida e a honra dos homens estão em perigo, e eis que uma pessoa recebe um telegrama a dizer para partir, fazer mais de mil milhas para ir ver uma bela pedra verde! Maldita seja a beleza, disse para mim, que não tem coração e não se importa com o sofrimento do homem!
Mas depois surgiu o espanto: a cólera tinha-se dissipado e apercebia-me com terror que esse grito desumano de Zorba respondia a um outro grito desumano que eu trazia em mim. Uma selvagem ave de rapina pôs-se a bater as asas no meu íntimo, preparando-se para lançar voo. Todavia, não parti; uma vez mais não tive coragem. Não parti, não segui o grito divino, o grito da besta selvagem que eu ouvia em mim, e não levei a cabo essa acção pobre e absurda. Seguindo a voz humana e glacial da razão, agarrei na caneta e escrevi a Zorba uma carta na qual eu lhe explicava que...
Ele respondeu-me: «Desculpa-me, patrão, mas não passas dum reles escriba. Podias ter visto, meu pobre infeliz, uma vez na tua vida uma bela pedra verde e não a viste. Louvado Deus, às vezes, quando não tenho que fazer, começo a perguntar a mim próprio: «Haverá ou não haverá Inferno?» Mas ontem, ao receber a tua carta, pensei: «Claro que tem de haver Inferno, senão para onde iriam certos reles escribas que eu conheço?» Passaram anos. Longos e terríveis anos, em que me parecia que o tempo tinha perdido a cabeça e andava à rédea solta, as fronteiras geográficas se haviam posto a rodopiar e os Estados alargavam e encolhiam como acordeões. Eu e Zorba tínhamo-nos perdido de vista, no meio da tormenta; só de tempos a tempos recebia um breve postal dele, expedido da Sérvia: «Continuo ainda vivo, mas como aqui faz um frio dos diabos fui obrigado a casar-me. Vira o postal para conheceres o seu palmo de cara;
bem giro, não achas? Ela tem a barriga já um tanto inchada porque anda a preparar-se para me dar um Zorbazinho. Chama-se Liuba. O casaco que eu tenho vestido, com uma gola de raposa, vem do dote da minha mulher; trouxe-me também uma porca com sete leitõezinhos. Que família! Beijo-te afectuosamente.
Alexis Zorba, ex-viúvo.» Uma outra vez enviou-me da Sérvia um barrete montenegrino bordado e com uma campainha de prata pendurada no penacho.
«Põe-no na cabeça quando escreves as tuas balelas, patrão; eu trago um igual enquanto trabalho. As pessoas, quando me vêem assim, põem-se a rir e perguntam-me: Tu és doido, Zorba; porque é que trazes essa campainha pendurada no barrete?» Mas eu sorrio e não lhes respondo. Só nós dois, patrão, é que sabemos a razão por que trazemos a campainha no barrete.»
No entanto, tinha-me agarrado novamente aos papéis e à caneta; conhecera Zorba tarde de mais, já não havia salvação para mim: havia-me tornado um reles escriba para sempre.
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Os chineses usam uma estranha praga: «Maldito sejas tu e possas nascer numa época importante.» Nós nascemos numa época importante, plena de tentativas transformadoras, de aventuras e de conflitos. E esses conflitos não opõem, como antigamente, as virtudes aos vícios, mas – o que é muito mais trágico – as próprias virtudes entre si. As antigas virtudes, reconhecidas até agora, começam a perder a sua força; já não conseguem responder às exigências religiosas, morais, espirituais, sociais da alma contemporânea. Dir-se-ia que a alma do homem cresceu e já não consegue suportar os antigos moldes.
Nas entranhas da nossa época, nas entranhas de todo o homem adaptado à nossa época, rebentou, conscientemente ou não, uma guerra civil impiedosa, entre os antigos mitos, outrora todos-poderosos, e os novos mitos que tentam, num esforço ainda inábil e mal coordenado, governar as nossas almas.
Essa a razão por que todo o homem consciente dos nossos dias se sente atormentado pelo destino dramático do seu tempo.
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Mas mais ainda que as angústias, o que simultâneamente me atormentava e fascinava, cujo rosto eu pretendia fixar, eram as grandes esperanças, vagas ainda e que tinham mudado de posição – as que nos fazem permanecer ainda de pé, olhando em frente com confiança, para lá da tormenta, o destino do homem.
A inquietação que me agitava não era propriamente a do homem actual, que se decompõe, mas sobretudo a do homem futuro, que está em vias de se formar e de nascer. Acreditava que se o criador dos nossos dias consegue exprimir rigorosamente os pressentimentos mais profundos que descobre dentro dele, poderá ajudar a fazer nascer, um pouco mais cedo, um pouco mais perfeitamente, o homem futuro.
Adivinhava, duma forma cada vez mais evidente, a responsabilidade do Criador. A realidade, pensava eu, não existe definitiva e acabada, independentemente de nós; cria-se com a colaboração do homem, é proporcional ao valor do homem. Se nós ao escrevermos ou ao agirmos conseguimos abrir o leito dum rio, a realidade pode passar por aí, mas se não interviermos, então é certo que a mesma realidade jamais se servirá dele. É certo que não somos nós, criadores, que arcamos com toda a responsabilidade, mas não há dúvidas que dela nos cabe grande parte. Em outras épocas, equilibradas, a profissão de escritor pôde ser um jogo; mas hoje é uma pesada tarefa e o seu objectivo não é divertir o espírito com romances cor-de-rosa, levando-o ao esquecimento: o seu objectivo, hoje, é o de proclamar a mobilização de todas as forças luminosas que sobrevivem ainda na nossa época de transição e de levar o homem a superar, tanto quanto puder, a besta.
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in "Carta a Greco"
de Nikos Kazantzaki

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Disse  Nikos Kazantzaki:  O homem é capaz e tem o dever de chegar ao fim do caminho que escolheu !
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30
Nov08

Nikos Kazantzaki # Como conheci Alexis Zorba

eva

Foram as viagens e os sonhos os maiores benfeitores que tive no decorrer da minha vida; quanto aos homens, muito poucos, vivos ou mortos, me ajudaram na minha luta. Se eu quisesse, no entanto, distinguir os homens que mais profundamente deixaram a sua marca na minha alma, nomearia talvez Homero, Buda, Nietzsche, Bergson e Zorba. O primeiro foi para mim o olhar pacífico e resplandecente, como o disco do sol que ilumina o universo com o seu brilho redentor; Buda, o olhar tenebroso e inacessível onde o mundo se afoga e se salva; Bergson libertou-me de certas questões filosóficas que permaneciam sem resposta e que me atormentaram nos primeiros anos de juventude; Nietzsche enriqueceu-me com novas angústias e ensinou-me a amar a vida e a não temer a morte.
Mas se eu tivesse que escolher um guia espiritual, um guru, como dizem os Hindus, um Velho como dizem os monges do monte Athos, seria certamente Zorba quem eu escolheria.
Porque era ele quem possuía isso que um escrevinhador precisa para ser salvo: o olhar primitivo que se apodera da sua presa como uma flecha vinda do alto; a ingenuidade criadora que todas as manhãs nos faz ver o universo como se fosse a primeira vez e dá uma virgindade aos elementos quotidianos e eternos – o vento, o mar, o fogo, a mulher, o pão; uma mão segura, um coração fresco, a coragem de se divertir com a própria alma e finalmente o riso sonoro e selvagem, vindo duma fonte profunda, mais profunda ainda que as entranhas do homem, que brotava, redentor, nos momentos críticos, do velho peito de Zorba: e quando brotava, podia abater, e abatia de facto, todas as barreiras – moral, religião, pátria – que o homem, medroso e miserável, ergueu à sua volta para caminhar coxeando, mas em segurança, ao longo da sua pobre vida.
Quando penso nesse alimento que durante tantos anos os livros e os mestres tinham oferecido a uma alma esfomeada, e nos miolos de leão que Zorba me ofereceu em alguns meses, dificilmente contenho a minha amargura e o meu furor. Não posso lembrar-me, sem que sinta o coração exaltar-se, com os propósitos que ele sustentava, as danças que ele dançava para mim, o santuri que tocava para mim, numa praia de Creta onde nós vivemos, seis meses, com uma multidão de trabalhadores, escavando a terra na esperança de encontrar um pouco de lenhite. Mas ambos sabíamos que esse objectivo material não passava dum pretexto para nos esconder aos olhos do mundo; o que nós queríamos era que o sol se pusesse depressa, que os operários largassem o trabalho, para irmos os dois instalar-nos na praia, comer o bom pão da aldeia, beber o nosso vinho seco de Creta e entabular conversa.
Eu raramente falava: que é que um intelectual pode dizer a um «papão»? E punha-me a ouvi-lo falar da sua aldeia situada no monte Olimpo, da neve, dos lobos, dos comitadjis, de Santa Sofia, da lenhite, de mulheres, de Deus, da pátria e da morte – e subitamente, quando se sentia oprimido e as palavras eram insuficientes para ele, erguia-se num salto sobre os seixos da praia e punha-se a dançar. Sólido, muito direito, ossudo, com a cabeça esticada para trás, os olhinhos redondos de pássaro, dançava, berrava, sulcava a praia com os pés enormes e borrifava a cara com água do mar.
Se eu tivesse escutado a sua voz, ou melhor, o seu grito, a minha vida teria adquirido um valor; viveria com o meu sangue, a minha carne e os meus ossos, aquilo que agora sonho como um fumador de haxixe e passo depois para o papel. Mas não me aventurei. Via Zorba dançar noite e dia, relinchando, a gritar-me para que eu saísse para fora da carapaça confortável da prudência e dos hábitos e partisse com ele para as grandes viagens sem regresso, mas ficava imóvel, transido.
Acontece-me frequentemente ter vergonha quando surpreendo a minha alma abstendo-se de levar a cabo o que o delírio supremo – a própria substância da vida – me impunha que fizesse; mas nunca tive tanta vergonha da minha alma como quando estava perante Zorba.
A exploração da lenhite foi um desastre completo. Zorba e eu tínhamos feito tudo o que podiam os, a força de gargalhadas, brincadeiras e discussões, para a levar à catástrofe. Não escavávamos para encontrar lenhite; isso era um pretexto para os homens sensatos e simples; era «para que eles não nos atirassem com tomates à cara», dizia Zorba, rlndo-se à gargalhada. - Porque a gente, patrão (chamava-me patrão e rebentava de riso), a gente, patrão, tem outros objectivos, objectivos mais elevados.
- Mas que objectivos, Zorba? – perguntava eu.
- Escavamos para ver se descobrimos os demónios que existem dentro de nós.
Não tardámos a esbanjar tudo o que me tinha dado o meu infeliz tio para montar escritório; despedimos os operários, assámos um borrego, enchemos um barril de vinho, instalámo-nos na praia junto da qual se encontrava a mina e pusemo-nos a comer e a beber. Zorba pegou no santuri, afinou a garganta velha e rouca e cantou um amané. Comíamos, bebíamos, e não me lembro de alguma vez me sentir tão bem disposto: a exploração da mina morreu, gritávamos, que Deus tenha a sua alma em descanso e nos dê longa vida. Para o inferno a lenhite!
Na manhã seguinte separámo-nos; eu voltei novamente para o meu mundo da escrita, levando comigo a ferida incurável feita por essa flecha cruel a que, à falta de nome melhor, nós chamamos espírito. Ele dirigiu-se para o norte, para ir ter à Sérvia, a uma montanha perto de Skopia, onde parece que descobriu uma rica veia de leucolite, levou à certa alguns ricaços, comprou ferramentas, contratou operários e pôs-se a abrir galerias na terra. Dinamitou os rochedos, fez estradas, canalizou a água, construiu uma casa, e, como era um velho ainda rijo, casou com uma linda viúva alegre, Liuba, de quem teve um filho.  
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in "Carta a Greco"
de Nikos Kazantzaki

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Disse  Nikos Kazantzaki:  O que não existe é aquilo que ainda não desejámos bastante !
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