Um dia recebi este telegrama: «Descoberta uma bela pedra de cor verde, presença imediata indispensável. - ZORBA.»
Começava a ouvir-se ao longe o ribombar da trovoada que se tinha desencadeado sobre a terra: a Segunda Guerra Mundial.
Milhões de homens estremeciam com a ameaça da fome, do massacre e da loucura. Todos os demónios do homem tinham despertado e estavam sedentos de sangue.
Foi durante esses dias envenenados que recebi o telegrama de Zorba. A princípio fiquei enfurecido: o mundo está em convulsão, a vida e a honra dos homens estão em perigo, e eis que uma pessoa recebe um telegrama a dizer para partir, fazer mais de mil milhas para ir ver uma bela pedra verde! Maldita seja a beleza, disse para mim, que não tem coração e não se importa com o sofrimento do homem!
Mas depois surgiu o espanto: a cólera tinha-se dissipado e apercebia-me com terror que esse grito desumano de Zorba respondia a um outro grito desumano que eu trazia em mim. Uma selvagem ave de rapina pôs-se a bater as asas no meu íntimo, preparando-se para lançar voo. Todavia, não parti; uma vez mais não tive coragem. Não parti, não segui o grito divino, o grito da besta selvagem que eu ouvia em mim, e não levei a cabo essa acção pobre e absurda. Seguindo a voz humana e glacial da razão, agarrei na caneta e escrevi a Zorba uma carta na qual eu lhe explicava que...
Ele respondeu-me: «Desculpa-me, patrão, mas não passas dum reles escriba. Podias ter visto, meu pobre infeliz, uma vez na tua vida uma bela pedra verde e não a viste. Louvado Deus, às vezes, quando não tenho que fazer, começo a perguntar a mim próprio: «Haverá ou não haverá Inferno?» Mas ontem, ao receber a tua carta, pensei: «Claro que tem de haver Inferno, senão para onde iriam certos reles escribas que eu conheço?» Passaram anos. Longos e terríveis anos, em que me parecia que o tempo tinha perdido a cabeça e andava à rédea solta, as fronteiras geográficas se haviam posto a rodopiar e os Estados alargavam e encolhiam como acordeões. Eu e Zorba tínhamo-nos perdido de vista, no meio da tormenta; só de tempos a tempos recebia um breve postal dele, expedido da Sérvia: «Continuo ainda vivo, mas como aqui faz um frio dos diabos fui obrigado a casar-me. Vira o postal para conheceres o seu palmo de cara;
bem giro, não achas? Ela tem a barriga já um tanto inchada porque anda a preparar-se para me dar um Zorbazinho. Chama-se Liuba. O casaco que eu tenho vestido, com uma gola de raposa, vem do dote da minha mulher; trouxe-me também uma porca com sete leitõezinhos. Que família! Beijo-te afectuosamente.
Alexis Zorba, ex-viúvo.» Uma outra vez enviou-me da Sérvia um barrete montenegrino bordado e com uma campainha de prata pendurada no penacho.
«Põe-no na cabeça quando escreves as tuas balelas, patrão; eu trago um igual enquanto trabalho. As pessoas, quando me vêem assim, põem-se a rir e perguntam-me: Tu és doido, Zorba; porque é que trazes essa campainha pendurada no barrete?» Mas eu sorrio e não lhes respondo. Só nós dois, patrão, é que sabemos a razão por que trazemos a campainha no barrete.»
No entanto, tinha-me agarrado novamente aos papéis e à caneta; conhecera Zorba tarde de mais, já não havia salvação para mim: havia-me tornado um reles escriba para sempre.
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Os chineses usam uma estranha praga: «Maldito sejas tu e possas nascer numa época importante.» Nós nascemos numa época importante, plena de tentativas transformadoras, de aventuras e de conflitos. E esses conflitos não opõem, como antigamente, as virtudes aos vícios, mas – o que é muito mais trágico – as próprias virtudes entre si. As antigas virtudes, reconhecidas até agora, começam a perder a sua força; já não conseguem responder às exigências religiosas, morais, espirituais, sociais da alma contemporânea. Dir-se-ia que a alma do homem cresceu e já não consegue suportar os antigos moldes.
Nas entranhas da nossa época, nas entranhas de todo o homem adaptado à nossa época, rebentou, conscientemente ou não, uma guerra civil impiedosa, entre os antigos mitos, outrora todos-poderosos, e os novos mitos que tentam, num esforço ainda inábil e mal coordenado, governar as nossas almas.
Essa a razão por que todo o homem consciente dos nossos dias se sente atormentado pelo destino dramático do seu tempo.
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Mas mais ainda que as angústias, o que simultâneamente me atormentava e fascinava, cujo rosto eu pretendia fixar, eram as grandes esperanças, vagas ainda e que tinham mudado de posição – as que nos fazem permanecer ainda de pé, olhando em frente com confiança, para lá da tormenta, o destino do homem.
A inquietação que me agitava não era propriamente a do homem actual, que se decompõe, mas sobretudo a do homem futuro, que está em vias de se formar e de nascer. Acreditava que se o criador dos nossos dias consegue exprimir rigorosamente os pressentimentos mais profundos que descobre dentro dele, poderá ajudar a fazer nascer, um pouco mais cedo, um pouco mais perfeitamente, o homem futuro.
Adivinhava, duma forma cada vez mais evidente, a responsabilidade do Criador. A realidade, pensava eu, não existe definitiva e acabada, independentemente de nós; cria-se com a colaboração do homem, é proporcional ao valor do homem. Se nós ao escrevermos ou ao agirmos conseguimos abrir o leito dum rio, a realidade pode passar por aí, mas se não interviermos, então é certo que a mesma realidade jamais se servirá dele. É certo que não somos nós, criadores, que arcamos com toda a responsabilidade, mas não há dúvidas que dela nos cabe grande parte. Em outras épocas, equilibradas, a profissão de escritor pôde ser um jogo; mas hoje é uma pesada tarefa e o seu objectivo não é divertir o espírito com romances cor-de-rosa, levando-o ao esquecimento: o seu objectivo, hoje, é o de proclamar a mobilização de todas as forças luminosas que sobrevivem ainda na nossa época de transição e de levar o homem a superar, tanto quanto puder, a besta.
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in "Carta a Greco"
de Nikos Kazantzaki
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Disse Nikos Kazantzaki: O homem é capaz e tem o dever de chegar ao fim do caminho que escolheu !
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