Nikos Kazantzaki # Como conheci Alexis Zorba
Foram as viagens e os sonhos os maiores benfeitores que tive no decorrer da minha vida; quanto aos homens, muito poucos, vivos ou mortos, me ajudaram na minha luta. Se eu quisesse, no entanto, distinguir os homens que mais profundamente deixaram a sua marca na minha alma, nomearia talvez Homero, Buda, Nietzsche, Bergson e Zorba. O primeiro foi para mim o olhar pacífico e resplandecente, como o disco do sol que ilumina o universo com o seu brilho redentor; Buda, o olhar tenebroso e inacessível onde o mundo se afoga e se salva; Bergson libertou-me de certas questões filosóficas que permaneciam sem resposta e que me atormentaram nos primeiros anos de juventude; Nietzsche enriqueceu-me com novas angústias e ensinou-me a amar a vida e a não temer a morte.
Mas se eu tivesse que escolher um guia espiritual, um guru, como dizem os Hindus, um Velho como dizem os monges do monte Athos, seria certamente Zorba quem eu escolheria.
Porque era ele quem possuía isso que um escrevinhador precisa para ser salvo: o olhar primitivo que se apodera da sua presa como uma flecha vinda do alto; a ingenuidade criadora que todas as manhãs nos faz ver o universo como se fosse a primeira vez e dá uma virgindade aos elementos quotidianos e eternos – o vento, o mar, o fogo, a mulher, o pão; uma mão segura, um coração fresco, a coragem de se divertir com a própria alma e finalmente o riso sonoro e selvagem, vindo duma fonte profunda, mais profunda ainda que as entranhas do homem, que brotava, redentor, nos momentos críticos, do velho peito de Zorba: e quando brotava, podia abater, e abatia de facto, todas as barreiras – moral, religião, pátria – que o homem, medroso e miserável, ergueu à sua volta para caminhar coxeando, mas em segurança, ao longo da sua pobre vida.
Quando penso nesse alimento que durante tantos anos os livros e os mestres tinham oferecido a uma alma esfomeada, e nos miolos de leão que Zorba me ofereceu em alguns meses, dificilmente contenho a minha amargura e o meu furor. Não posso lembrar-me, sem que sinta o coração exaltar-se, com os propósitos que ele sustentava, as danças que ele dançava para mim, o santuri que tocava para mim, numa praia de Creta onde nós vivemos, seis meses, com uma multidão de trabalhadores, escavando a terra na esperança de encontrar um pouco de lenhite. Mas ambos sabíamos que esse objectivo material não passava dum pretexto para nos esconder aos olhos do mundo; o que nós queríamos era que o sol se pusesse depressa, que os operários largassem o trabalho, para irmos os dois instalar-nos na praia, comer o bom pão da aldeia, beber o nosso vinho seco de Creta e entabular conversa.
Eu raramente falava: que é que um intelectual pode dizer a um «papão»? E punha-me a ouvi-lo falar da sua aldeia situada no monte Olimpo, da neve, dos lobos, dos comitadjis, de Santa Sofia, da lenhite, de mulheres, de Deus, da pátria e da morte – e subitamente, quando se sentia oprimido e as palavras eram insuficientes para ele, erguia-se num salto sobre os seixos da praia e punha-se a dançar. Sólido, muito direito, ossudo, com a cabeça esticada para trás, os olhinhos redondos de pássaro, dançava, berrava, sulcava a praia com os pés enormes e borrifava a cara com água do mar.
Se eu tivesse escutado a sua voz, ou melhor, o seu grito, a minha vida teria adquirido um valor; viveria com o meu sangue, a minha carne e os meus ossos, aquilo que agora sonho como um fumador de haxixe e passo depois para o papel. Mas não me aventurei. Via Zorba dançar noite e dia, relinchando, a gritar-me para que eu saísse para fora da carapaça confortável da prudência e dos hábitos e partisse com ele para as grandes viagens sem regresso, mas ficava imóvel, transido.
Acontece-me frequentemente ter vergonha quando surpreendo a minha alma abstendo-se de levar a cabo o que o delírio supremo – a própria substância da vida – me impunha que fizesse; mas nunca tive tanta vergonha da minha alma como quando estava perante Zorba.
A exploração da lenhite foi um desastre completo. Zorba e eu tínhamos feito tudo o que podiam os, a força de gargalhadas, brincadeiras e discussões, para a levar à catástrofe. Não escavávamos para encontrar lenhite; isso era um pretexto para os homens sensatos e simples; era «para que eles não nos atirassem com tomates à cara», dizia Zorba, rlndo-se à gargalhada. - Porque a gente, patrão (chamava-me patrão e rebentava de riso), a gente, patrão, tem outros objectivos, objectivos mais elevados.
- Mas que objectivos, Zorba? – perguntava eu.
- Escavamos para ver se descobrimos os demónios que existem dentro de nós.
Não tardámos a esbanjar tudo o que me tinha dado o meu infeliz tio para montar escritório; despedimos os operários, assámos um borrego, enchemos um barril de vinho, instalámo-nos na praia junto da qual se encontrava a mina e pusemo-nos a comer e a beber. Zorba pegou no santuri, afinou a garganta velha e rouca e cantou um amané. Comíamos, bebíamos, e não me lembro de alguma vez me sentir tão bem disposto: a exploração da mina morreu, gritávamos, que Deus tenha a sua alma em descanso e nos dê longa vida. Para o inferno a lenhite!
Na manhã seguinte separámo-nos; eu voltei novamente para o meu mundo da escrita, levando comigo a ferida incurável feita por essa flecha cruel a que, à falta de nome melhor, nós chamamos espírito. Ele dirigiu-se para o norte, para ir ter à Sérvia, a uma montanha perto de Skopia, onde parece que descobriu uma rica veia de leucolite, levou à certa alguns ricaços, comprou ferramentas, contratou operários e pôs-se a abrir galerias na terra. Dinamitou os rochedos, fez estradas, canalizou a água, construiu uma casa, e, como era um velho ainda rijo, casou com uma linda viúva alegre, Liuba, de quem teve um filho.
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in "Carta a Greco"
de Nikos Kazantzaki
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Disse Nikos Kazantzaki: O que não existe é aquilo que ainda não desejámos bastante !
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